Movimento cultural que rompe com padrões eurocêntricos potencializa a identidade das pessoas de pele preta, agora protagonistas de sua arte contemporânea
Por Carolina Fraga, João Victor Thomaz e Nicole Machado
Invisível. Por muitos anos, foi assim que a cultura africana permaneceu. Ela é marcada por muitas cicatrizes e anos de luta e escravidão. Segundo a autora e linguista Ama Mazama, a Europa forjou grande parte de sua identidade moderna às custas dos africanos, por meio da construção da imagem do europeu como mais civilizado e do africano como seu espelho negativo. A partir daí, a cultura africana passa a ser desvalorizada e as suas marcas de sobrevivência se tornam invisíveis para uma parte da sociedade que acredita ser superior. Apesar de toda essa desvalorização que foi propagada durante anos e que permanece até os dias atuais, os povos africanos são os pioneiros na produção cultural humana.
O afrofuturismo vem para desafiar os conceitos eurocêntricos dominantes, com enfoque no encontro entre história, o resgate da mitologia e cosmologias africanas com a tecnologia, a ciência, o novo e o inexplorado. Esse conceito levanta possibilidades de vivência negra em mundos que não são marcados pelo racismo e pela opressão, funcionando como crítica à realidade atual. Em sua TED Talk, a youtuber Nátaly Neri, que comanda o canal Afros e Afins, acredita que é um futuro em que negros existem como criadores de sociedades marcadas pelo alto desenvolvimento tecnológico e pela cultura e estética africana.
Origem
Um dos pioneiros do movimento afrofuturista foi o poeta e compositor de jazz, Sun Ra, durante a década de 1960. Ele incluía em suas composições elementos que remetiam ao espaço, futuro e, ao mesmo tempo, à ancestralidade africana. Depois dele, outros artistas fizeram produções parecidas, como Octavia Butler, Ytasha Womack, Basquiat e Spike Lee.
Somente em 1994 que o afrofuturismo tornou-se, de fato, um movimento cultural, graças ao escritor americano Mark Dery, autor do ensaio Black To the Future, que questionava os padrões de estereótipos sobre os negros, comumente usados nas produções de Hollywood, e buscava a consolidação da comunidade imaginária e da identidade negra. Após o fim da guerra civil no continente africano, essa consolidação também teve apelo através de artistas como Kia Henda e Nástio Mosquito, que acrescentaram ao debate a extinção da imagem do negro pejorativamente “exotizado”.
“Mostro como identificam o exotismo no africano e como isso propagou a imagem do negro, do preto, do tribal, o que constrói todo o preconceito”.
– Mosquito, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 2010
O afrofuturismo em manifestações artísticas
Em 1966, os quadrinhos do super-herói Pantera Negra, da Marvel, já faziam jus ao conceito de afrofuturismo, retratando uma sociedade africana tecnologicamente desenvolvida. Naquela época, já era apresentada a visão avançada da nação de Wakanda, país fictício localizado na África subsaariana, onde acontece toda a história do personagem. A adaptação de Pantera Negra aos cinemas foi uma grande chegada do afrofuturismo na cultura pop.
Nas ficções científicas tradicionais, a existência de um personagem negro é, muitas vezes, para cumprir uma cota de diversidade, e não para tratar de questões raciais. Com essa adaptação cinematográfica, foi possível observar um mundo representado apenas por atores e personagens negros, sem ter o racismo como elemento tão forte ou ameaçador na vida das pessoas. No ano de 2018, o Fantástico veiculou uma reportagem que tinha como pauta a importância do filme Pantera Negra.
Inicialmente, o afrofuturismo atuava como um movimento social e político no mundo musical, por ser uma das maiores formas de comunicação da época. Ao longo do tempo, foi se espalhando e passou a atuar em diversos outros tipos de manifestações artísticas, como cinema, literatura e moda. Hoje, ainda é possível perceber essa ligação com a música, através de artistas como Janelle Monáe, Willow Smith e Beyoncé.
O exemplo mais atual de afrofuturismo no mundo musical é o álbum visual da cantora Beyoncé, Black Is King, que foi lançado em 2020. O álbum também conta com um filme musical que foi totalmente dirigido, escrito e produzido pela cantora. Muitos elementos deste lançamento fazem apologia a elementos afrofuturistas, desde os detalhes visuais às batidas das músicas. Beyoncé canta sobre a origem negra, louva as religiões de matriz africana e trata de temas de grande importância, como o colorismo e o empoderamento feminino. Outro ponto que merece destaque no álbum são as contribuições musicais, pois, além dos artistas norte americanos, como Pharell Williams, Kendrick Lamar e do rapper e esposo de Beyoncé, Jay-Z, o disco traz participações de artistas africanos, como Wizkid, Shatta Wale, Burna Boy, Salatiel, Tekno, Tiwa Savage, etc. Perante toda essa genialidade, a cantora foi aclamada nas redes sociais e ficou conhecida como autora de uma obra “revolucionária”.
“O afrofuturismo vai trazer esse questionamento sobre nós, sobre a ausência desse passado, através do pensamento e das obras, resgatar essas referências da África Antiga, como fez Beyoncé, no “Black Is King”.
– Morena Mariah, criadora da plataforma de educação e do podcast Afrofuturo, em entrevista ao jornal Nexo
No Brasil, a literatura brasileira também possui grandes expoentes do afrofuturismo, com escritores como Fábio Kabral, Alê Santos e Conceição Evaristo. Os três fortalecem em suas concepções temas com cunho ancestral africano, a partir de propostas narrativas e didáticas diferentes. Para Alê Santos, o afrofuturismo vai muito além de uma cerne exclusiva na literatura, na música ou no cinema. Esse movimento produz algumas narrativas que questionam a sociedade e que colocam o negro em um futuro em que ele nunca foi imaginado para estar.
Afrofuturismo na pandemia
Devido à pandemia do novo coronavírus, o mundo precisou ser reformulado e repensado em todos os aspectos possíveis. O mundo da moda também foi um dos afetados por essa realidade e uma nova forma de continuar produzindo os famosos desfiles de moda foi criada, para poder se adaptar ao mundo virtual: as passarelas virtuais. A pioneira dessa inovação foi Anifa Mvuemba, diretora criativa da marca Hanifa. Em maio de 2020, Mvuemba apresentou um desfile inovador e totalmente digital, que viralizou nas redes sociais, pois utilizou modelos 3D para vestir as roupas de sua marca.
No lançamento de sua coleção, a Pink Label Congo, a tecnologia se conectou com as tradições e os dilemas do Congo, país da África Central, no qual nasceu a estilista. Antes da apresentação, Mvuemba contextualizou a situação social do país e denunciou a mineração ilegal de cobalto que ocorre em algumas regiões. Nascida a partir de uma história dolorosa, a beleza do Congo é, muitas vezes, negligenciada e Mvuemba foi inspirada por todo o poder, força e esperança do povo congolês.
Além de levar os desfiles para o digital, Anifa Mvuemba inspirou o mundo da moda e quebrou muitas barreiras por ser uma mulher negra e africana a trabalhar no universo fashion. O afrofuturismo presente em suas passarelas revelou uma maneira de buscar novas formas de viver, além de ser uma forma de repensar e criticar o presente.